30 dezembro 2010

Aprendemos que não era uma loucura descriminalizar a droga

No espaço de uma década, o consumidor de drogas passou de criminoso a doente. A estratégia de combate à toxicodependência aplicada em Portugal rompeu com a abordagem moralista. Hoje é elogiada na Europa, mas há muito por fazer.

É mais do que provável que da herança política de José Sócrates não venha a constar o papel determinante que exerceu na descriminalização da posse e consumo de droga em Portugal. Mas a verdade é que sem o então ministro adjunto do primeiro-ministro, com as tutelas da Toxicodependência, Juventude e Desporto, talvez ainda acreditássemos que o abuso de drogas se vencia dando as mãos e largando com regularidade uma razoável quantidade de endorfinas.

A descriminalização do consumo de drogas resultou de um processo único e irrepetível. Entre 1999 e 2001, uma comissão de peritos nomeada pelo Governo e dirigida por Alexandre Quintanilha elaborou, com base em fundamentos científicos e longe do moralismo que tanto tolhe o discurso ideológico, uma corajosa proposta de estratégia nacional de luta contra a droga.

A estratégia transformou-se em política aprovada em Assembleia da República e foi esta talvez a mais extravagante decisão do segundo Governo de António Guterres. Sócrates até tentou replicar o método no processo de co-incineração, mas essa ainda se revelou uma questão mais fracturante.

Consumo não disparou

Sim, é verdade: há um antes e um depois do dia 1 de Julho de 2001, data da entrada em vigor de uma lei que deixou de condenar a penas de prisão pessoas que consumiam substâncias que eram consideradas ilícitas. Sabemos hoje que as profecias de então não se concretizaram e que, a despeito do que muitos temiam, o país não se transformou numa Meca para os consumidores de droga.

Aprendemos nesta década que as políticas na área da droga não devem ser gizadas em função de posições preconceituosas e dogmáticas. Passámos a aceitar que a questão sanitária se sobrepunha à questão jurídica; que as prisões estavam repletas de pessoas que continuavam a consumir droga ao ritmo com que se propagavam as doenças infecciosas. Nas prisões e fora delas.

Em Dezembro de 2004, Hernâni Vieira, director do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, dizia o que a avestruz se recusava a escutar: "O problema da droga nas prisões resolve-se quando se resolver o problema da droga fora das prisões." E acrescentava, para desagrado dos mais irrealistas: é possível reduzir o seu consumo, mas acabar com a droga não passa de um sonho bem-intencionado.

Sim, aprendemos que o que mais valia era a expansão dos programas de substituição, após um conturbado período de diabolização da metadona; que as políticas de redução de riscos e de minimização de danos eram garantia de mais informação por parte dos consumidores e de menos custos para todos; que as políticas de prevenção deveriam ser cada vez mais sérias e profissionais.

A derrota do proibicionismo

Aprendemos, nestes últimos anos, que a insistência no proibicionismo não teve quaisquer resultados e que era possível equilibrar a redução da procura com as tentativas repressivas de diminuição da oferta; ou que era possível baixar o número de casos de infecções e de mortes por causa da utilização de droga.

Tudo isto teve a particularidade de diminuir o número de reclusos relacionados com posse e consumo de droga; de contribuir para baixar a criminalidade que lhe estava associada nos anos anteriores; e, desta forma, contribuir para um clima social bem mais pacífico.

O balanço, hoje, quase dez anos após a entrada em vigor desta lei, é, obviamente, positivo. No início do século, o país ostentava excessivos problemas de consumo de opiáceos e de infecções e mortalidade associada nos relatórios da agência europeia das drogas (cuja sede Portugal recebeu contrafeito, como se fosse o corolário do seu trajecto junkie na década de 90, mas cujo conhecimento coligido se revelou muito útil).

O elogio europeu

Alguns anos depois, a Europa passou a elogiar o que começou a ficar conhecido com o modelo português - certamente com algum exagero - e que é, neste caso, a assunção do paradigma sanitário, associado a uma contra-ordenação, espécie de recriminação administrativa simbólica, da autoria das comissões de dissuasão. Mas esse tão louvado modelo está por concluir pelas mesmas razões de sempre. Tem sido uma litania preconceituosa a impedir a existência de salas de injecção assistida, como as que existem em vários parceiros europeus, ou a resistir à adopção de programas de prevenção e de redução de riscos nas prisões.

Numa década, o consumidor de drogas passou de criminoso a doente e talvez não falte muito até que seja encarado como cidadão. O aparecimento de associações de consumidores, como a que a Apdes, uma organização não governamental, criou recentemente, talvez seja o que agora nos falte aprender. Agora que até já sabemos onde comprar drogas às quais chamamos legais.

(Fonte Jornal Público de Portugal: http://www.publico.pt/Sociedade/aprendemos-que-nao-era-uma-loucura-descriminalizar-a-droga_1472909?all=1 )

27 dezembro 2010

Veja: má vontade e preconceito conduzem à cegueira

Brasília, 27 de dezembro de 2010.

Sr. Editor,

Apesar de não surpreender a ninguém que haja acompanhado as edições da sua revista nos últimos anos, o número 52 do ano de 2010, dito de “Balanço dos 8 anos de Lula”, conseguiu superar-se como confirmação final da cegueira a que a má vontade e o preconceito acabam por conduzir.

Qualquer leitor que não tenha desembarcado diretamente de Marte na noite anterior haverá de perguntar-se “de que país a Veja está falando?”. E, se o leitor for um brasileiro e não integrar aquela ínfima minoria de 4% que avalia o Governo Lula como ruim ou péssimo, haverá de enxergar-se um completo idiota, pois pensava que o Governo Lula fora ótimo, bom ou regular. Se isso se aplica a todas as “matérias” e artigos da dita retrospectiva, quero deter-me especialmente às páginas não-numeradas e não-assinadas, sob o título “Fecham-se as cortinas, termina o espetáculo”. Ali, dentre outras raivosas
adjetivações (e sem apontar quaisquer fatos, registre-se), o Governo Lula é apontado como “o mais corrupto da República”.

Será ele o mais corrupto porque foi o primeiro Governo da República que colocou a Polícia Federal no encalço dos corruptos, a ponto de ter suas operações criticadas por expor aquelas pessoas à execração pública? Ou por ser o primeiro que levou até governadores à cadeia, um deles, aliás, objeto de matéria nesta mesma edição de Veja, à página 81? Ou será por ser este o primeiro Governo que fortaleceu a Controladoria-Geral da União e deu-lhe liberdade para investigar as fraudes que ocorriam desde sempre, desbaratando esquemas mafiosos que operavam desde os anos 90, (como as Sanguessugas, os Vampiros, os Gafanhotos, os Gabirus e tantos mais), e, em parceria com a PF e o Ministério Público, propiciar os inquéritos e as ações judiciais que hoje já se contam pelos milhares? Ou por ter indicado para dirigir o Ministério Público Federal o nome escolhido em primeiro lugar pelos membros da categoria, de modo a dispor da mais ampla autonomia de atuação, inclusive contra o próprio Governo, quando fosse o caso? Ou já foram esquecidos os tempos do “Engavetador-Geral da República”?

Ou talvez tenha sido por haver criado um Sistema de Corregedorias que já expulsou do serviço público mais de 2.800 agentes públicos de todos os níveis, incluindo altos funcionários como procuradores federais e auditores fiscais, além de diretores e superintendentes de estatais (como os Correios e a Infraero). Ou talvez este seja o governo mais corrupto por haver aberto as contas públicas a toda a população, no Portal da Transparência, que exibe hoje as despesas realizadas até a noite de ontem, em tal nível de abertura que se tornou referência mundial reconhecida pela ONU, OCDE e demais organismos internacionais.

Poderia estender-me aqui indefinidamente, enumerando os avanços concretos verificados no enfrentamento da corrupção, que é tão antiga no Brasil quanto no resto do mundo, sendo que a diferença que marcou este governo foi o haver passado a investigá-la e revelá-la, ao invés de varrê-la para debaixo do tapete, como sempre se fez por aqui.

Peço a publicação.

Jorge Hage Sobrinho
Ministro-Chefe da Controladoria-Geral da União